(Resumo do artigo: A colunista Yvonne Maggie retoma a influência do antropólogo Anthony Leeds em sua trajetória acadêmica. Leeds reuniu extenso acervo de fotos sobre o Rio de Janeiro. Elas estão em exposição na cidade, no Museu da República)
Eu tinha 24 anos quando terminei o curso de graduação em ciências sociais no Instituto de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ). Foram tempos de grandes rupturas e muitos impedimentos. Minha formatura não teve o glamour das cerimônias e festas das conclusões de curso de hoje em dia. Muitos colegas haviam sido presos e outros tiveram de sair do País antes de terminarem a faculdade, perseguidos ou condenados pela punição do 477, decreto que expulsava da universidade os estudantes considerados subversivos.
A formatura foi realizada no gabinete da direção do IFCS, só com os alunos e a diretora e catedrática de antropologia, d. Marina São Paulo de Vasconcellos. Em meio a um clima tenso, nossa querida mestra fez um pequeno discurso, citou Mao Tsé-Tung e disse palavras de esperança. Dias depois, veio o golpe de 13 de dezembro de 1968 instaurado pelo Ato Institucional nº 5, que cassou e aposentou onze professores do nosso Instituto, inclusive d. Marina.
Neste mesmo ano, em meio ao turbilhão que se abatia, e as ciências sociais eram alvo dos agentes de repressão e dos militares que confundiam sociologia com socialismo, abriu-se uma porta impensável e improvável. O antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira, associando-se ao grande etnólogo David Maury-Louis da Universidade de Harvard, iniciou um programa de pós-graduação em antropologia social, no Museu Nacional. Seguindo os moldes norte-americanos e a partir de um grande projeto de pesquisa sobre o Brasil, o programa ficou mais ou menos protegido dos ataques da ditadura.
Anthony Leeds, jovem antropólogo norte-americano formado em Columbia, oferecia um curso sobre antropologia urbana, um dos mais ricos e inovadores do recém-criado mestrado. No segundo semestre de 1969 iniciei esse curso, junto com alguns colegas, experiência pioneira que nos salvou da opção radical da luta armada. Éramos poucos alunos, mas me lembro bem de Luiz Antonio Machado da Silva e do arquiteto Carlos Nelson Ferreira dos Santos, autor, mais tarde, do belo livro A cidade como um jogo de cartas (http://goo.gl/kHSQqH), e é claro do meu marido à época, Gilberto Velho.
Desejávamos pensar o Brasil, levar subsídios aos debates públicos, mas não queríamos perder a vida combatendo com armas. Tony Leeds, como chamávamos carinhosamente o mestre, dava suas aulas em uma das salas arejadas, com janelas para o Jardim das Princesas, fundos do prédio histórico do Museu Nacional. O Museu passou a ser definido por alguns como o Jardim dos Finzi-Contini, em alusão ao filme de Vitorio De Sica, lançado em 1970, sobre a vida dos jovens filhos de um rico casal aristocrata judeu, no final da década de 1930, que se divertiam como se nada houvesse para se preocupar, enquanto o nazismo e o fascismo tomavam vulto. Uma metáfora aos que haviam optado pelo caminho da academia e não da luta armada contra a ditadura.
As discussões eram sempre surpreendentes porque a antropologia urbana de Tony Leeds era extremamente rica e sua abordagem pouco comum para a época. Desorganizadamente organizadas, as aulas introduziram questões que foram um mapa ou uma bússola para nossas pesquisas na cidade e para os futuros trabalhos dos alunos de 1969 do Museu.
Tony insistia para que fizéssemos pesquisa de campo e nos estimulava a pensar a cidade e, em especial, o Rio de Janeiro. Líamos uma bibliografia inusitada e o texto que mais me marcou foi “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra”, de Friedrich Engels. Tony nos mostrou como a descrição de Engels das cidades inglesas havia sido feita com o cuidado de um antropólogo em uma aldeia, usando fontes primárias e sua própria observação determinante e impecável.
Nesse curso se formou uma nova geração de antropólogos preocupados com as questões da cidade ao estilo da antropologia social britânica e da antropologia cultural norte-americana. Por sugestão e insistência de Tony para que tivéssemos uma experiência de trabalho de campo na cidade, Gilberto Velho e eu realizamos um estudo no edifício Barata Ribeiro, 200, o famoso prédio de conjugados em Copacabana.
Esta pesquisa foi o início, o embrião da pesquisa em outro prédio semelhante, o Edifício Estrela, onde morávamos. A vida no nosso prédio foi descrita por Gilberto Velho em sua dissertação de mestrado em 1970, e transformou-se no livro Utopia urbana. A insistência e o estímulo de Tony foram fundamentais na minha vida. A pesquisa no “Barata Ribeiro 200” foi meu primeiro passo e com ela me encantei pela antropologia urbana e pelo trabalho de campo na cidade.
Tony foi o grande mentor e precursor da antropologia urbana. O curso do nosso querido amigo e criativo antropólogo, voltado para a cidade, para o fenômeno urbano e não para o Brasil como faziam os outros brasilianistas da época, foi o estopim para uma antropologia urbana diferente dos estudos influenciados pelos modelos de classe social, pelos estudos da classe trabalhadora e da luta de classe, gerando uma nova antropologia urbana entre nós.
Por generosidade de Cristina Patriota, que organizou o número do Anuário Antropológico 2012/2013 em homenagem ao antropólogo criador da antropologia urbana voltada para a subjetividade e o etos das camadas médias urbanas, publiquei pela primeira vez um ensaio escrito a quatro mãos com Gilberto Velho. O artigo tem características de pioneirismo, ao mesmo tempo construído com o olhar de iniciantes na antropologia. Uma descrição densa e uma enorme vontade de conhecer.
Dois anos depois do curso no Museu parti com Gilberto Velho para Austin, Texas, e vivi um ano muito intenso e caloroso com o casal Tony e Liz, que além de nos receberem com afeto, nos venderam um Fusca 68, bicolor, com o qual conhecemos os EUA em duas memoráveis viagens.
Tony fez muito pela antropologia no Brasil e minha geração ganhou muito com seu trabalho. Jamais vou esquecer as aulas no Museu e o curso que fiz na Universidade do Texas. Tony Leeds iniciou também um outro campo fundamental para a antropologia urbana, o campo da antropologia visual a partir de suas fotos delicadas e primorosas.
O acervo fotográfico do antropólogo foi recentemente doado por sua viúva, a cientista política Elizabeth Leeds, para a Casa de Oswaldo Cruz, por iniciativa de Nísia Trindade Lima, vice-presidente de Ensino, Informação e Comunicação da Fiocruz .
A belíssima reunião deste patrimônio da história do Rio de Janeiro está em exposição até novembro no Museu da República até o final de novembro. São 770 fotos que revelam a história de algumas favelas com o olhar perspicaz e sensível do pioneiro da antropologia urbana no Brasil.
Nos dias 22 e 23 de setembro, foi realizado no Museu da República o seminário “O Rio que se queria negar”. Nesse seminário, que contou com a presença de estudiosos da cidade e das favelas, foi lançada pela editora Fiocruz a 2a edição, cuidadosa e com muitas fotos do acervo, do livro do casal Anthony e Elizabeth Leeds, A sociologia do Brasil rural.
(FOTOS: No topo: Favela da Rocinha, em São Conrado. Feira livre e casas. 1969. No meio da página, Favela Macedo Sobrinho, no Humaitá. Mutirão de moradores em benefício da favela e de suas condições de moradia. A prática da ajuda mútua também foi um dos temas privilegiados no trabalho de Leeds. 1964?. no pé da página, crianças carregando água, favela Macedo Sobrinho, 1964? - CRÉDITO: Anthony Leeds/Acervo da Casa Oswaldo Cruz)